MARIA DO CARMO CORREA GALVÃO (1925-2023), UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE O BRASIL E O RIO DE JANEIRO
No dia seis de maio, por volta das 13 horas e trinta minutos, tomei conhecimento do falecimento de Maria do Carmo Correa Galvão. Nesse inicio de tarde, a noticia chegou, como sempre chegam essas notícias, de modo inesperado e a constatação do irredutível movimento do tempo…
Mais uma vez fui convocada para escrever umas poucas linhas a respeito de Maria do Carmo. Novamente interrogo-me sobre o que escrever, e como encontrar as justas palavras. Entre avanços e recuos, palavra vai, palavra vem, mensagens e manifestações de amigos, colegas e ex- alunos, e a tela à minha frente com um título que me parece adequado à espera de um conteúdo, mas o pensamento reluta em se organizar.
De todas as especificidades que possam ser assinaladas e enumeradas pela atuação de Maria do Carmo, parece-me relevante registrar o que ficou. No exercício de olhar o tempo, pedi ajuda aos amigos. A relação afetuosa e exigente com os alunos permanece como lembrança comum entre vários deles, aprendizado, solidariedade, lucidez nas análises, dedicação, paixão, amor e entusiasmo por uma geografia una, sabedoria, a experiência de campo no Congo Belga em 1954 ampliando a participação em congresso por sua conta e risco, exemplo de autonomia e independência profissionais, são outras lembranças que afloraram… Mas, e o tom para este obituário?
Maria do Carmo foi referência como pesquisadora e professora. Primeira professora da UFRJ a ter realizado seu doutorado no exterior, conduziu com raro talento, e a colaboração de Therezinha Segadas, Lysa Bernardes, e Jorge Xavier da Silva a criação do PPGG. Não posso deixar de registrar meu respeito por essas três mulheres, cada uma à sua maneira, pela força e empenho na vida profissional. Numa época na qual a pós-graduação em geografia foi considerada um capricho de “senhoras com colar de pérolas”, a criação do Programa de Pós-Graduação em Geografia, indica a inteligência, independência e qualificação daquelas senhoras frente à incredulidade do trabalho feminino no âmbito universitário nos anos de 1960, 1970 e 1980. O prolongamento dessa incredulidade ao longo dos anos posteriores acrescido da necessidade de imposição monotemática em determinados círculos acadêmicos da disciplina acabou por afastar as novas gerações de relevantes contribuições sobre as mudanças no país e no estado do Rio de Janeiro. Mas, sobretudo da possibilidade de construção do raciocínio geográfico.
O livro Maria do Carmo Correa Galvão. Percursos Geográficos, publicado pela editora Lamparina, em 2009, oferece uma indicação da originalidade no tratamento das temáticas que lhe foram tão caras, e principalmente da linguagem genuinamente geográfica que lhe era própria. Os textos exemplificam de modo preciso os debates do momento no qual foram escritos: a contribuição da geografia para o planejamento, as transformações no estado do Rio de Janeiro, o significado da questão ambiental na geografia, os rumos da geografia agrária e da pesquisa nesse tema.
Em todos eles, é possível observar o permanente interesse e o desejo de compreensão das circunstâncias históricas e a sensibilidade para captar os movimentos e processos de mudanças, a força da economia urbano-industrial no Sudeste, e suas implicações. Sua produção acadêmica foi influenciada por seus próprios deslocamentos pessoais, e pelo conhecimento adquirido nos vários trabalhos de campo, instrumento que dominava como poucos e método que teve influência em sua formação.
Seus trabalhos sobre o Brasil, pouco acolhidos na atualidade, merecem atenção porque permitem reconstituir geograficamente a formação da rede nacional de circulação articulando características dos diferentes modais, a respectiva inscrição regional, e a articulação entre modais nas diferentes regiões e a articulação para a rede nacional. Compreendia, portanto, a formação e desenvolvimento da rede de circulação no país como condição de diferentes sistemas de transporte cuja finalidade não poderia ser compreendida senão vinculada à organização do espaço. Este texto é significativo não apenas pela dimensão histórica, mas também pelo aspecto analítico sobre redes técnicas, planejamento e gestão do território. De modo semelhante, o texto sobre geoeconomia do Brasil introduz uma dimensão epistemológica dos desafios da organização do espaço em uma abordagem transversal. São dois exemplos importantes a respeito da contribuição geográfica para questões de planejamento e nos situam nos temas atinentes ao período no qual foram redigidos, 1966 e 1972. Em ambos, é possível perceber o caráter pedagógico sobre as constantes transformações da organização do espaço no Brasil. Discussão importante, pois assumia de modo assertivo que “a organização do espaço não é apenas reposta ecológico-cultural”. Premissa que nos esclarece sobre como situava seu trabalho em ralação à produção geográfica daquele momento.
Como não se interessar pelo estado do Rio de Janeiro? Uma pergunta que se fazia com certo estarrecimento, pois considerava esse estado “fonte inesgotável de interesse” para pesquisas. Seu olhar era marcado nos diferentes textos por esse entusiasmo geográfico, isto é, pelas diferentes formas de interações entre natureza e sociedade na estrutura espacial de tal modo individualizada e cambiante do estado. Embora ordens distintas, conseguia extrair elementos fundamentais dessa interação. Nesse estado observava a permanente tensão entre passado e presente, impulsos e retrações com forte apoio em ciclos extrativos e as consequências na produção de intensas desigualdades. A noção de sistema espacial foi convocada de modo apropriado como referência para analisar mudanças e transformações, bem como para discutir o papel do Estado como agente modelador do espaço, e a necessidade de políticas de desenvolvimento no estado. Ao mesmo tempo, o estado nunca “flutua” em suas análises, ao contrário, ele está necessariamente inserido em um contexto regional, num jogo dialético da organização do espaço.
A questão ambiental não poderia deixar de despertar aquela euforia que lhe era característica quando se via diante de questões tão próprias ao conhecimento geográfico. Sua formação lhe permitia transitar com facilidade entre as áreas da geografia. Arhur Ramos, Carl Troll, Francis Ruellan e Hilgard Sternberg foram professores com que Maria do Carmo trabalhou mais diretamente e que de algum modo influenciaram seu modo de compreender a problemática ambiental como questão geográfica. Essa perspectiva esteve sempre presente em seus cursos e projetos de pesquisa. Sua concepção de ambiente era diretamente relacionada ao que denominava “postura metodológica”. Sua contribuição foi sem qualquer dúvida importante para indicar a superação de uma visão dual sobre ambiente que o restringisse à condição de suporte material. Mais uma vez sua posição clara em relação aos debates daquele momento era marcada pela compreensão de processos de longa duração e pela concepção de ambiente como produto da relação homem-meio. Reconhecemos no texto ‘Focos sobre a questão ambiental no Rio de Janeiro”, os desafios para fazer avançar o conhecimento sobre a questão, mas a certeza de que a geografia tinha a oferecer pistas originais para o debate, principalmente no cruzamento de suas diferentes áreas de pesquisa. A problemática fundamental do ambiente consistiria na própria definição de ambiente, dos princípios éticos que a fundamentariam, e, portanto, da superação das distorções conceituais que vinham, de seu ponto de vista, sendo difundidas.
Provavelmente neste obituário não há suficiente distanciamento crítico. No momento considero esse ponto absolutamente irrelevante. Estimo sua contribuição importante para compreendermos o pensamento geográfico produzido a partir do Programa de Pós-Graduação em Geografia e a formação de tantos pesquisadores e professores que por ele passaram. Não tenho dúvidas de que sua trajetória profissional teve relação direta com a solidez da formação da qual pode se beneficiar e que nunca mediu esforços para transmiti-la com originalidade e entusiasmo. Tomo a liberdade de fazer desse texto a homenagem de todos nós, alunos.
Rio de Janeiro, 8 de maio de 2023.
Gisela Pires do Rio